Angola tem como Línguas Nacionais (ou dialectos): Kikongo, Kimbundo, Tchokwe, Umbundo, Mbunda, Kwanyama, Nhaneca, Fiote, Nganguela. Faz sentido, hoje, querer escolher uma delas como única Língua Nacional, levando-a a substituir o português? Ou é mais viável apostar num “português de Angola” (à semelhança do “português do Brasil”)? Veja-se, em Portugal, o caso do Mirandês.
A adopção da língua do antigo colonizador como língua oficial foi uma decisão comum à grande maioria dos países africanos. No caso de Angola deu-se o facto, pouco comum, de uma intensa disseminação do português entre a população angolana, a ponto de haver uma expressiva parcela da população que tem como sua única língua aquela herdada do colonizador.
Entre 1575 e 1592 estima-se que tenham desembarcado em Angola 2.340 portugueses. Destes, 450 foram vítimas de guerras e doenças, 300 radicaram-se em Luanda e os restantes no interior, onde assimilaram as línguas e culturas africanas. O número de mulheres europeias na colónia seria muitíssimo reduzido, o que significa que a larga maioria dos filhos dos colonos eram mestiços, educados por mulheres africanas que lhes ensinavam as suas línguas.
Entre 1620 e 1750 o quimbundo afirmou-se como a língua mais usada em praticamente todos os lares de Luanda e na vida diária da cidade. O estabelecimento de uma elite afro-portuguesa – que ocupava os principais cargos da administração pública e estava envolvida no tráfico de escravos – foi o factor que mais contribuiu para esta situação. Embora tivesse um bom conhecimento de português, esta elite era falante nativa de kimbundo ou kikongo.
No interior dos territórios controlados pelos portugueses, o português era usado como língua franca entre chefes e comerciantes, mas a maioria da população expressava-se exclusivamente em kimbundo. Na verdade, os escravos exportados a partir de Luanda, independentemente das suas origens, aprendiam algum kimbundo e eram baptizados nesta língua antes de serem embarcados.
Entre 1750 e 1822, os portugueses procuraram impedir a crescente africanização, cultural e linguística, da elite afro-portuguesa de Angola, nomeadamente através do decreto de 1765 do governador Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, que desencorajava o uso de línguas africanas na educação das crianças.
Os testemunhos da época apontam para a utilização de variedades reestruturadas do português entre as camadas mais pobres das cidades costeiras e arredores. Em 1894, o folclorista e filólogo americano Heli Chatelain, ao referir-se ao kimbundo falado em Luanda, define-o como sendo uma mistura de elementos portugueses, enumerando 90 empréstimos do português ao kimbundo, que incluem não só empréstimos lexicais (ex. palaia, praia), mas também gramaticais (ex. poji, pois), bem como vários exemplos de palavras portuguesas adaptadas à morfologia do kimbundo (ex. njanena, janela; jinjanena, janelas).
Só durante o século XX é que o português se tornou gradualmente a língua mais falada nas áreas urbanas de Angola. Este facto ficou a dever-se, essencialmente, ao aumento do número de colonos portugueses, tanto homens como mulheres, a maioria dos quais preferia fixar-se nos centros urbanos costeiros, em detrimento das zonas do interior. E apenas na década de 1950 se reuniram as condições para a generalização do português a todo o território angolano, pois só então a maioria da população precisou efectivamente de dominar esta língua.
Vários factores contribuíram para esta situação. Por um lado, durante o Estado Novo, para serem reconhecidos como assimilados, os angolanos tinham de demonstrar saber ler, escrever e falar fluentemente em português, bem como vestirem e professarem a mesma religião que os portugueses e manterem padrões de vida e costumes semelhantes aos europeus. O domínio de uma variedade rudimentar do português não os tornaria, portanto, elegíveis. Era obrigatório dominar o português europeu, ainda que o acesso à educação tivesse sido durante muito tempo vedado à generalidade dos angolanos.
Por outro lado, na década de 1960, em resposta à influência crescente dos movimentos nacionalistas em Angola, Portugal investiu massivamente na intensificação da sua presença no interior, nomeadamente através do fomento da criação de grandes colonatos agrícolas.
Finalmente, durante a década de 1970, o exército português agrupou grande parte da população do interior, especialmente no leste, em aldeamentos, ou seja, em “vastas aldeias organizadas pelos militares, muitas vezes rodeadas de arame farpado, onde se agrupavam africanos anteriormente dispersos”.
Apesar de ser um processo impositivo, a adopção do português como língua de comunicação corrente em Angola propiciou também a veiculação de ideias de emancipação em certos sectores da sociedade angolana, facilitando a comunicação entre pessoas de diferentes origens étnicas. O período da guerra colonial foi o momento fundamental da expansão da consciência nacional angolana. De instrumento de dominação e clivagem entre colonizador e colonizado, o português adquiriu um carácter unificador entre os diferentes povos de Angola.
Com a independência em 1975, o alastramento da guerra civil, nas décadas subsequentes, levou à fuga de muitas centenas de milhares de angolanos das zonas rurais para as grandes cidades — particularmente Luanda — levando ao seu desenraizamento cultural. Esta deslocação interna haveria, contudo, de favorecer a difusão da língua portuguesa, já que esta se tornaria a única língua de contacto dos refugiados internos entre si e com os habitantes destas cidades. Após a paz entre a UNITA e o MPLA os refugiados que regressaram às regiões rurais de origem levavam já o português como primeira língua.
A construção da estrutura administrativa do novo Estado nacional reforçou a presença da língua portuguesa, usada no exército, na administração, no sistema escolar, nos meios de comunicação, etc.. Embora, oficialmente, o Estado angolano declare, na própria Constituição, que “valoriza e promove o estudo, o ensino e a utilização das demais línguas de Angola”, na prática tendeu sempre a valorizar exclusivamente os aspectos que contribuem para a unificação do país – o português como a única língua unificadora – em detrimento de tudo o que pudesse contribuir para a diferenciação dos grupos e a tribalização – a miríade de línguas e dialectos regionais e étnicos. Aspecto particularmente crítico num continente de fronteiras recentes e artificiais.
O poder político em Angola fala em português. A elite do MPLA, em grande percentagem, tem a língua portuguesa como língua materna. É uma elite urbanizada que perdeu algo da sua raiz étnica.
O caso português – Mirandês
Em Portugal, quem cruzar as ruas de Miranda do Douro, na expectativa de ouvir falar mirandês, poderá não o encontrar com muita facilidade. Com efeito, há cerca de quatro séculos que esta língua terá deixado de se falar na cidade, tornada episcopal em 1545 e alguns anos antes elevada a sede de comarca, sofrendo, por isso, um forte crescimento económico e demográfico, o que terá contribuído decisivamente para a substituição do mirandês pelo português.
Assim, o mirandês viu-se acantonado nos pequenos centros, sendo aí que mais se pode ouvir esta língua, filha do latim e moldada pelas gerações que há muitos séculos habitam o extremo sul do vasto território onde se falou o asturo-leonês.
Por outro lado, os seus falantes, cujo número rigoroso é difícil de determinar, sempre se habituaram a falar “grave” (nome dado ao português) na presença de forasteiros, reservando o mirandês para situações mais intimistas.
Mas o mirandês está a regressar serenamente à cidade. Trazido pelos habitantes das aldeias que vão abandonando os pequenos centros rurais e utilizado, ainda que ao abrigo dos sobranceiros ouvidos citadinos, em situações comunicativas diversas. Por outro lado, é a cidade que agora se orgulha de ostentar a toponímia em mirandês, colocando igualmente painéis informativos, diante dos seus monumentos mais emblemáticos, na língua que é também sua.
O falar mirandês cresceu com a Terra de Miranda, herdeira das antigas divisões administrativas leonesas. Contudo, nas entranhas dos seus castros, dispostos sobranceiramente sobre as escarpas do Douro, há vestígios arqueológicos, históricos e, naturalmente, linguísticos, de outros povos pré-romanos que habitaram a região.
Lavradores, boieiros e pastores calcorrearam as arribas do Douro deixando na toponímia, nas expressões telúricas e metafóricas com que baptizaram as terras e as entranhas das fragas, as marcas indeléveis da sua passagem. Topónimos como Ourrieta, que significa concha de terra arável na montanha; Mamolas e Marmolinas, do megalítico; Castro e Castralhouço, da cultura dos castros; Canhada e Cardeinhas, nomes proto-históricos; Fraga de Proba Moços e Faia la Moça, que nos lembram antigas histórias e ritos; Rodielha e Carril Mourisco, nomes de antigas estradas romanas; assim como outras raízes ou elementos lexicais, atestam e confirmam os traços históricos dos povos que aqui viveram e mourejaram.
Esta civilização agro-pastoril, com fortes marcas comunitárias, tem-se mantido até quase aos nossos dias. E nem as falésias do Douro representaram um obstáculo intransponível para as gerações de trabalhadores, contrabandistas e aventureiros que calcorrearam as fronteiras rumo ao nascente, prolongando os laços seculares que nos unem às vizinhas regiões de Saiago e de Aliste.
O mirandês viveu, durante séculos, no seu estado natural, a fala. Embora as primeiras formas escritas se encontrem em documentos datados do século XII, só em finais do século XIX, pelas mãos de José Leite de Vasconcelos, a língua mirandesa viu a primeira tentativa de a fixar por escrito. No século XX encontramos muitos nomes que, à luz do filólogo, procuraram dar continuidade a esse trabalho de fixação do mirandês.
Assinalem-se, sem pretensões de exaustão, os trabalhos de tradução realizados pelo Abade Manuel Sardinha, pelo Padre Francisco Meirinhos, assim como Bernardo Fernandes Monteiro. Para além destes, há que referir os nomes de autores e contadores mirandeses ou da região, como Bazílio Rodrigues, Francisco Rodrigues Brandão, Francisco Reis Domingues, Trindade Coelho que no teatro, na poesia, nas crónicas, foram dando forma a muitos textos que hoje fazem parte do património escrito da língua mirandesa.
O mirandês interessou também muitos investigadores portugueses e estrangeiros. Na continuidade do já referido Leite de Vasconcelos cuja obra, Estudos de Filologia Mirandesa, publicada em dois volumes em 1900 e 1901, continua a ser uma referência para o estudo desta língua, há que referir outros nomes como Menéndez Pidal, Herculano de Carvalho, Leif SletsjØe, assim como Erik Staaff, cujos trabalhos são fundamentais para quem pretenda iniciar uma investigação sobre este idioma.
Mas o século XX assistiu, sobretudo, ao trabalho extraordinário do vulto maior da língua e cultura mirandesas: António Maria Mourinho. Nas suas múltiplas facetas, de historiador, antropólogo e linguista, este investigador deu corpo a um vasto património – que hoje faz parte do Centro de Estudos com o seu nome, sedeado na Biblioteca Municipal – onde se procura estudar e dar continuidade ao seu trabalho em prol da língua e da cultura mirandesas.
Para o último quartel do século XX, estavam reservadas as mudanças mais importantes na história da língua mirandesa. Entre outras, assinalamos a introdução no ensino (desde o ano lectivo 1987/88); a elaboração de uma norma escrita (a Convenção Ortográfica foi publicada em 1999); o reconhecimento político (através da Lei 7/99, de 29 de Janeiro, sem esquecer o Despacho Normativo n.º 35/99, de 5 de Julho de 1999 que regulamenta o direito à aprendizagem do mirandês); e os estudos científicos sobre a língua, quer em pequenos artigos quer nas teses universitárias que se têm produzido (nomeadamente na Universidade do Minho, Coimbra, Toulouse – Le Mirail e Salamanca), e a edição do Pequeno Vocabulário Mirandês – Português da autoria do Padre Moisés Pires.
Estes factores terão contribuído, cada um à sua maneira, para a emergência de um renovado interesse pela língua e pela cultura mirandesas, cujas faces mais visíveis são também o nascimento de uma literatura em mirandês, a colocação de toponímia em quase todas as localidades linguisticamente mirandesas, o aparecimento em diversos órgãos de comunicação social, assim como de um prolífico conjunto de textos de dimensão realmente inusitada.
O mirandês interessa, em primeiro lugar, aos seus falantes, nomeadamente pelo valor simbólico de afirmação identitária, sendo inegável que a prática de uma língua local favorece também o desenvolvimento intelectual e a abertura para outras culturas.
Por isso, o domínio da língua mirandesa tem ainda mais importância se considerarmos que a mesma constitui uma chave de acesso ao património comum das culturas que se exprimem através das línguas românicas, assim como o conhecimento destas culturas permite enriquecer a aprendizagem e o domínio da língua mirandesa. Importa assim reconhecer a língua e a cultura mirandesa não como um obstáculo à circulação da informação e das ideias, mas antes afirmar as vantagens que ela traz na abertura a uma dimensão regional da modernidade.
Assim, se o futuro da língua mirandesa depende, em primeiro lugar, dos seus falantes, a sua continuidade está também relacionada com a existência de instituições e meios de transmissão como a escola e outras instituições. Apesar das transformações sociais concorrerem para a situação de precariedade em que se encontra a língua mirandesa, a realidade mostra-nos que esta ainda mantém a sua vitalidade, para a qual tem igualmente contribuído a política cultural da autarquia, nomeadamente no apoio à edição de variadíssimas obras em mirandês.
O dia 17 de Setembro tornou-se o Dia Oficial da Língua Mirandesa, em clara alusão à data em que a Assembleia da República aprovou o diploma que determinou a oficialização da sua língua de Portugal.
Uma data que merece, ano após ano, comemorações municipais, com o intuito de exaltar os valores locais e fazer com que cada vez mais mirandeses se orgulhem da sua identidade. A língua é um dos elementos com maior peso no nosso vasto e rico património cultural, que diferencia a nossa identidade. No Dia da Língua Mirandesa a autarquia presta a sua homenagem a todos quantos têm contribuído para a sua divulgação, para aqueles que contribuem activamente para aumentar o já considerável espolio literário e, sobretudo, todos quantos usam no seu dia-a-dia a língua mirandesa, os verdadeiros guardiões, os verdadeiros responsáveis para que o mirandês se mantenha vivo e de excelente saúde, para se perpetuar pelas gerações vindouras.